Quadrinhos, cinema e essa coisa chamada filosofia

09/01/2016 18:51

Muitos estão aprendendo o segredo que era mantido vivo há anos por um grupo de fãs de histórias em quadrinhos, as histórias clássicas dos super-heróis, que continuam ainda hoje sendo apreciadas por um público cada vez mais interessado nestas histórias; ainda mais com a invasão destes super-heróis nas telas.

Para aqueles que acreditavam que, as adaptações dos quadrinhos para a telona é coisa do momento, estão muito enganados. Ela é tão velha, quanto à história do cinema. A primeira adaptação foi lá na década de 1920, com Tarzan, após, na década de 1930, veio Batman; Flash Gordon e Buck Roger na década de 1940. Andando um pouco a frente na história, a partir da década de 1960, foram produzidos filmes com os heróis da Marvel, mas com um resultado péssimo. Já a partir da década de 1970 a 1990, vêm grandes adaptações como Superman, Batman, Hulk e Mulher Maravilha.

            Virando o século, as adaptações das HQ`s[1] para as telas se tornam um marco para a história do cinema, pois se tornam filmes de grande sucesso de bilheteria. Em 2000 é lançado X-men, o sucesso foi grandioso, dando assim mais quatro continuações para série: X-men 2, em 2003 e X-men: O confronto final, em 2006; após veio X-men Origens: Wolverine em 2009 contando a saga do maior super-herói mutante e, em 2011 sai a história do início deste time de super-heróis, X-men First Class. O mesmo ocorreu com o Quarteto fantástico, lançado em 2005 e seu segundo filme da série, em 2007. Mas foram duas séries de adaptações que marcaram mesmo a presença nas telas: a primeira foi a trilogia Homem-Aranha, onde esta foi um dos negócios mais bem sucedidos de Hollywood, e a segunda, o ressurgimento de Batman nos cinemas (Batman Begins, 2005 e Batman: O cavaleiro das trevas, 2008).

            Mas o que fazem estas adaptações se tornarem tão populares? O que eles têm de tão atraentes?

            Bom, a partir da década de 1990, com a chegada do Mangá (quadrinhos japoneses), o universo Comics deu uma caída. As novas adaptações para o cinema deram um gás para o ressurgimento do mercado Comics. Mas existe um segredo que era guardado no interior dos fãs das HQ`s que, com estas novas adaptações para o cinema, fizeram popularizar ainda mais este segredo. Mas qual é este segredo?

            Um dos mais notáveis desenvolvimentos na cultura pop da atualidade é o forte ressurgimento do super-herói como ícone cultural e de entretenimento. Graças às novas adaptações das HQ`s para o cinema, as histórias de super-heróis trazem entretenimento, para quem as vê superficialmente. Elas não são histórias inocentes como muitos pensam. Os super-heróis abordam questões na qual todo ser humano enfrenta, elas expõem de uma forma perspicaz às questões referentes à ética e moral, além de estimular profundamente o pensamento. Foram os gregos que foram os primeiros a entender o gera audiência. Segundo o filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C.), ao experimentar (a trama nas telas ou lendo um HQ`s), sentimentos fortes e acontecimentos trágicos, esperava-se que as pessoas purificassem as próprias emoções; assim faz o espectador/leitor refletir sobre os problemas centrais da condição humana, como a natureza do destino ou conflitos entre compaixão e a justiça. Assim como os filósofos Platão e Aristóteles, Superman e Batman chegam para ficar, bem como o Homem-Aranha e os X-men.

Este é um dos super-heróis mais conhecidos, indiferentemente da idade, todos conhecem, o personagem Homem-Aranha. A resposta para tamanho sucesso pode estar nas palavras de Irwin, “o Homem-Aranha nos ofereceu um super-herói com quem podemos nos indentificar. Peter Parker (o alter ego do Homem-Aranha) é um jovem que luta contra as tentações humanas comuns, bem como entraves da adolescência”[2]. Este personagem é um CDF, o nerd da turma, é alvo de todas as chacotas; é discriminado por seus colegas e vítima de bullying. Ele é um super-herói muito próximo de todo adolescente, com espinhas no rosto, corpo franzino, tentando se enturmar. Suas histórias mostram os anseios de todo adolescente neste período de transformação. Assim, o corpo e a vida de um super-herói, neste caso o personagem Homem-Aranha, pode ser igual a vida de qualquer pessoa. Numa comparação com a mitologia clássica, o personagem heróico moderno, inserido nas páginas das HQ’s, tornou-se mais humano[3]. O Homem-Aranha, segundo Knowles, é mostrado como um fracote[4], e esse é o segredo de seu grandiosos sucesso. O super-herói é alguém igual aos leitores: é um adolescente, cujo corpo está em transformação, e que não raro se sente um fraco mesmo no seu personagem. Seus criadores parecem querer mostrar aos leitores que o Homem-Aranha é ‘o herói que eles poderiam ser’[5].

A frase dita por Ben Parker para seu sobrinho Peter (Homem-Aranha), “grande poder, traz grande responsabilidade” pode nos representar muitas coisas, nos mostrar um norte, ou uma resposta para nossa vida. As adaptações para o cinema assim como as HQ´s, nos faz buscar o herói em nosso interior, não para ficar pulando de prédios em prédios ou combatendo o crime; mas fazer um ato heróico que pode salvar nosso dia.

            Bom, não podemos esquecer deste, o mais famoso alienígena das histórias de super-heróis, Kal-El nome kriptoniano ou Clark Kent nome terráqueo, ou ainda como todos o conhecemos, Super-Homem. O que um indivíduo especial, como Kal-El /Clark Kent (Super-Homem), estará fazendo em salvar vidas, ao invés de usar seus poderes a seu benefício, como por exemplo: usar sua grandiosa força, espremendo um carvão até conseguir um diamante. Por que ele se torna um repórter do jornal, o ‘Planeta Diário’? Bom, Kal-El/Clark Kent (Super-Homem), desejaria não se mostrar muito, pois qual seria a reação das pessoas em saber que ele é um extraterrestre, e que poderia derreter um carro com um olhar de raiva. Com certeza a população ficaria amedrontada com este tipo de ser.  Por isso Kal-El se esconde atrás de seus óculos, se escondendo na identidade de Clark Kent, sendo um cidadão comum. Kal-El, sabe que ele não é daqui, não pertence a este mundo. Foi criado entre os humanos; mas, na verdade, não é um de nós. Kal-El (Super-Homem) é o único sobrevivente de sua raça. Ele é um extraterrestre, e se sente muito sozinho neste mundo, segurando este grande fardo, o seu grandioso segredo. E aí está à chave de suas atitudes heróicas. O desejo básico de pertencer, de fazer parte, é um aspecto fundamental da natureza humana, nossa necessidade de nos ligarmos aos outros é vital para o nosso bem-estar. Presumo que, mesmo sendo um extraterrestre, Kal-El sente a mesma necessidade básica de comunidade.

            Mas Kal-El, não dá as costas à sua herança alienígena, ele sabe que, só quando usa seus dons naturais da raça kriptoniana, é que se sente vivo e engajado. Só quando ele age em seu pleno potencial, em vez de se esconder por trás de um par de óculos, ele participa de verdade do mundo a sua volta. Só quando ele é abertamente kriptoniano (Super-Homem), ele pode ser também um homem da Terra, com exuberância e excelência. Quando ele vive como a pessoa que realmente é, e aplica suas distintas forças a serviço dos outros, ele assume seu lugar justo na comunidade, da qual agora ele faz parte e na qual se sente realizado[6]. Não foi por coincidência que, quando o Aristóteles pretendia descobrir a raiz da felicidade, ele começou a explorar o que é viver com excelência[7]. O Super-Homem, a seu modo, descobriu a mesma relação.

Não é porque Aristóteles tenha dito que o filósofo pode especular sobre todas as coisas que a gente se debruça sobre as histórias em quadrinhos de super-heróis e suas adaptações para as animações da TV e para o cinema. Elas podem ser objeto de investigação para a filosofia e para muitas ciências, como a sociologia, a psicologia, a teologia, a literatura, dentre outras. Mas o que nos interessa mais de perto é o aspecto pedagógico que os Super-Heróis das HQ’s representam, especialmente na formação do ideal de vida das crianças e dos adolescentes, mais especificamente, na formação da consciência moral.

Se Piaget e Kohlberg tem alguma razão quanto aos estágios de desenvolvimento da consciência moral, as HQ’s cumprem uma enorme importância na gênese e na formação da consciência moral. O Super-Herói inspira a internalização da norma como algo bom, e em certa fase até como algo quase que sagrado. A autoridade de um princípio vem daquele que o apresenta. De mais a mais, os Super-Heróis ensinam pelo exemplo, eles mostram pela ação o que é bom e justo. E isso é muito mais eloqüente do que os conselhos em abstrato. E é também aristotélico: aprende-se ao seguir o exemplo das pessoas mais virtuosas, mas a virtude se mostra nas ações do cotidiano.

Então, além da finalidade explícita de proporcionar entretenimento, as histórias em quadrinhos de super-heróis, apresentam as questões relacionadas ao comportamento moral e dão exemplos de virtuosismo para os seres humanos enfrentarem os problemas morais do dia–a–dia. Elas mostram vivencialmente as questões a importância enfrentamos no cotidiano, principalmente com relação à responsabilidade pessoal e social, à justiça, ao crime e ao castigo, à mente e às emoções humanas, à identidade pessoal, à alma, à noção de destino, ao sentido de nossa vida, ao que pensamos da ciência e da natureza, ao papel da fé na aspereza deste mundo, à importância da amizade, ao significado do amor, à natureza de uma família, às virtudes clássicas como coragem e muitos outros temas.

Embora sejam produzidas para que o grande público as consuma como diversão, as HQ’s podem receber esta forma de leitura mais criteriosa, filosófica, que mostra o aspecto ético que as perpassa e, no caso específico da nossa leitura, que essa perspectiva é a da ética das virtudes ou da phronesis de Aristóteles. E o exemplificamos, apenas para retomar, com alguns Super-Heróis mais influentes quanto a este aspecto.

Além desse aspecto pedagógico mais geral, também se poderia enfatizar ainda que as HQ’s e sua transformação em desenhos e filmes para a TV e o Cinema podem servir de material didático para facultar o aprendizado do pensar filosófico mais geral, envolvendo assuntos como a sociedade, as questões de gênero e diferença, a questão do entendimento humano, etc.

Por outro lado, ainda que tenhamos mantido o nosso foco na perspectiva aristotélica, as HQ’s também abordam temas que se poderia muito bem relacionar com as teorias filosóficas de muitos outros autores, como Kant, Rousseau, Kierkegaard, Nietzsche, dentre outros. Mas o que nós destacamos é a essa leitura aristotélica das histórias, para mostrar, por exemplo, que as os Super-Heróis praticam ações virtuosas, que podem servir de exemplo a ser seguido e isso pode ser didaticamente utilizado no trabalho de educadores que, querendo ou não, influem sobre a formação da consciência moral das crianças. Podem, então, fazê-lo no intuito de refletir sobre a prática do bem, da justiça, da prudência, e assim, ajudar os educandos a caminhar na direção de hábitos virtuosos, que se mostram nas ações virtuosas, ou para lembrar Batman, não é quem eu sou por dentro, mais o que eu faço que me define[8].

 



[1] História em quadrinhos.

[2] MORELI, André. Super-Heróis nos desenhos animados.São Paulo: Europa, 2010, p . 161.

[3] REBLIN, Iuri A. Para o alto e avante: Uma análise do universo criativo dos super – heróis. Porto alegre, RS: Asterisco, 2008, p. 57.

[4] KNOWLES, Christopher. Nossos deuses são Super-Heróis. Tradução: Marcello Borges. São Paulo: Cultrix, 2008, p. 160.

[5] ibid.,  p. 160.

[6] IRWIN, Willian (org.). Super – Heróis e a Filosofia:Verdade, justiça e o caminho socrático. Tradução: Marcos Malvezzi Leal.  São Paulo: Madras, 2005, p. 20.

[7] ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. 2ª edição. Tradução Edson Bini. Bauru, SP: Edipro, 2007,1105a 30-1105b.

[8] NOLAN, Christopher.  Batman Begins. Direção: Christopher Noilan. Warner Bros Picture, 2005. 1 DVD (139 min.), color.